sexta-feira, dezembro 08, 2006

"Com a mão no meu ombro, postou-se a meu lado. Dir-se-ia que eu era um amigo de infância a quem falava dos seus aborrecimentos. Depois, apertou-me a nuca com os dedos e arrastou-me para o espelho. «Vem, vamos ver-nos juntos», disse-me. Virei os olhos para o espelho e, à luz ténue da candeia, pude verificar uma vez mais até que ponto éramos parecidos. Eu fora acometido deste mesmo sentimento, lembrava-me bem, a primeira vez que o vira na antecâmara de Sadik Paxá. Nesse dia, vira o homem que eu precisava de vir a ser: agora, pensava que ele viera a ser um homem como eu. Somos um só! E isso parecia-me uma verdade evidente! Tinha a impressão de estar paralisado, congelado ali. Fiz um gesto, como que para me libertar daquele encantamento, para verificar que eu era mesmo eu: passei a mão pelo cabelo. Ele fez o mesmo gesto, de resto com muita habilidade, sem romper a simetria da imagem no espelho. Copiava-me o olhar, a postura da cabeça, mimava-me o terror, que eu tanto queria evitar ver ao espelho, sem dele conseguir despegar os olhos, impelido pela curiosidade que o medo me inspirava; ele ficou muito bem disposto, como um garoto que arrelia o amigo imitando-lhe as palavras e os gestos. Depois, começou a gritar: tínhamos que morrer juntos! Que disparate, pensava eu, mas tinha muito medo. Essa foi a noite mais horrível que passei na sua companhia."
Orhan Pamuk - A Cidadela Branca

É Nobel da Literatura de 2006 e é muito bom. A Cidadela Branca é uma obra metafórica, que nos transporta para uma terra de sonhos e pesadelos, liberdades e dependências. Passado na Istambul do século XVII, o romance coloca algumas questões existenciais e inquietantes, na voz de dois homens com inúmeras semelhanças físicas mas oriundos de dois mundos diferentes. As fronteiras que os separam e o choque civilizacional entre ambos acabam por esbater-se num jogo de espelhos perigoso, que lhes confunde as identidades. Numa altura em que muito se discute a entrada da Turquia para a União Europeia esta obra, tão bem escrita, mantem a actualidade e o interesse.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Encontrei-te. Não foi fácil mas depois lembrei-me e fui ao google. Escrevi "rapariga feminista esbofeteia jovem machista" e vim dar aqui. ;)

Podias escrever sobre isso. O prazer de agredir um machista presunçoso. :)

2:12 da tarde  

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