O sangue dos outros
“Estendeste-me a mão e disseste-me com a cabeça baixa: 'Adeus, peço-lhe desculpa.' E senti nos meus braços uma grande vontade de te puxar para mim, de te apertar contra o meu coração; nos meus braços, o gesto parecia tão fácil: fácil de fazer, e fácil de desfazer, um gesto transparente e exactamente igual a si próprio. Mas deixei os braços caídos ao longo do meu corpo. Um gesto, e Jacques está morto. Um gesto, e qualquer coisa de novo aparece no mundo, qualquer coisa que eu criei e se desenvolve fora de mim, sem mim, arrastando atrás de si imprevisíveis avalanches. 'Ele apertou-me nos braços.' Sentia já nos teus olhos a minha cara que me escapava; que se tornara já no teu coração o acontecimento opaco com que eu acabava de carregar o teu passado. Apertei a tua mão com indiferença; deixei-te ir embora sozinha pelas ruas em festa; ias a chorar mas eu não sabia. E fui-me embora, pelo meu lado, julgando-me também sozinho e acariciando a meu modo um vago remorso. Como se todos esses beijos que não te dei não nos tivessem prendido um ao outro com tanta força como os abraços mais ardentes; com tanta força como esses beijos que já não voltarei a dar-te, como essas palavras que nunca mais te direi e que me ligam a ti para sempre, tu, meu único amor.”
Simone de Beauvoir - O Sangue dos Outros
Com algumas leituras viajamos e passamos a conhecer tempos nos quais não vivemos ou locais onde nunca tínhamos estado. Vestimos os trajes de outros séculos, respiramos outros aromas, mudamos de sexo, religião ou raça, envelhecemos ou voltamos a ser criança. Adquirimos requintes de crueldade, tornamo-nos frios e racionais ou sensíveis e românticos. Tornamo-nos pessoas diferentes, vivendo experiências de vida e morte que apenas as letras nos poderiam proporcionar.
Com outras leituras encontramo-nos a nós próprios, como somos. Damos connosco a pensar que a nossa vida deu um livro e ninguém se lembrou de nos informar.
1 Comments:
A leitura tem esta a dupla face: de nos tornar outros e nos rever em certas atmosferas... Por agora, as nossas vidas dão um blog ;) não é Cat!?
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