quinta-feira, maio 17, 2007

Passeios de Ninguém




"Sempre foi comum dizer-se que ‘Tempo é Dinheiro’!?. A sabedoria popular tem a característica de ser oportuna, precisa e pertinente. Com apenas três palavras, este velho ditado popular pretende evidenciar que é necessário rentabilizarmos o nosso tempo. Hoje em dia, para além do tempo, começa a haver a necessidade de rentabilizarmos o nosso espaço. Provavelmente, fará sentido começar a dizer-se que ‘Espaço é Dinheiro’!? ou, se optarmos por um dos mecanismos de gestão mais em voga dos últimos tempos, a fusão, poderíamos reinventar o velho ditado e passar a afirmar que ‘Tempo e Espaço são Dinheiro’!?
Serve esta pequena introdução para vos falar sobre os Passeios. Refiro-me aos passeios que temos em Portugal, aqueles que fazem parte da nossa via pública e que existem em todas as nossas cidades, vilas e aldeias. Carinhosamente, vou baptizá-los por ‘os nossos passeios’. Toda este espaço junto, todos esses metros quadrados somados, constituem uma área com uma dimensão a perder de vista e que, na sua essência, não serve para quase-nada!!? É verdade, quase ninguém os usa porque não foram feitos para serem usados pelas pessoas. Um destes dias estava a ver televisão e a minha atenção despertou para um anuncio que dizia, entre outras coisas, que: ‘podem tirar-me o fado, podem tirar-me a visão, podem tirar-me a calçada, podem até tirar-me a fala, mas não me tirem o azeite…’ Só depois percebi, que não era verdade, de facto ninguém queria remover a velha calçada, muito pelo contrário, tratava-se apenas de uma técnica de comunicação que apelava à nostalgia pela positiva.
A tradição da calçada ‘dos nossos passeios’ é, segundo alguns, mais uma das montras vivas representativas da nossa cultura centenária e que devemos manter, no mínimo, por mais mil anos! Eu penso exactamente o contrário. Eu digo com toda a convicção, que ‘os nossos passeios’ são um contribuinte líquido para a exclusão. Excluem quase tudo e quase todos. Diariamente, nos locais mais diversos, todos nós vemos pessoas a caminhar à beira ‘dos nossos passeios’ ou, dito de outra forma, pela beira da estrada. É verdade, as pessoas escolhem, naturalmente, os caminhos que consideram mais adaptados à sua locomoção. Infelizmente, ‘os nossos passeios’ não têm essa característica fundamental. O problema complica-se ainda mais quando pensamos nos cidadãos com mobilidade reduzida, nos pais com os carrinhos de bebés, nas pessoas mais idosas ou mesmo nas mulheres portuguesas que arrisquem o uso de sapatos de salto alto. Por isso os vemos todos os dias a caminhar na estrada, na direcção dos automobilistas, colocando a sua vida, e a dos outros, em risco. Os deficientes motores, que necessitam de se deslocar em cadeiras de rodas, acabam por ser obrigados a converter-se em condutores de ligeiros sem matrícula, muito provavelmente, sem carta para o efeito. Não me lembro de encontrar no novo código da estrada, normas que contemplem esta evidência. Afinal existem mais duas grandes categorias de veículos para além dos pesados e dos ligeiros, a saber, as cadeiras de rodas com motor e as cadeiras de rodas sem motor!
Mesmo assim, quando ‘os nossos passeios’ têm a dimensão adequada, coisa rara, acabamos por encontrar de quase tudo a bloqueá-los: árvores, paragens de autocarro, ecopontos, obras, cabines telefónicas, postes de electricidade, sinais de trânsito, etc. Sei que, no enquadramento das obrigações comunitárias, tudo isto é ilegal mas parece que ninguém está interessado em cumprir ou fazer cumprir as leis. Propositadamente, não me referi aos carros estacionados em cima dos passeios. Esse é um problema que depende apenas do nosso civismo ou da falta dele e, somos nós enquanto cidadãos, que o temos de resolver. Contudo, acredito seriamente, que as Policias e as Entidades Fiscalizadoras poderiam ajudar, se é que não há nenhum exagero neste tipo de pedido! Ainda assim, e no meio de tantos obstáculos, acaba por ser a velha e desadequada ‘calçada portuguesa’o maior dos inimigos. Um contratempo desnecessário e dispendioso. Surgiu no século XIX e é ainda amplamente usada no calçamento em quase todas as cidades. Eu diria que é cada vez mais actual, muito embora já estejamos no século XXI. É um piso geralmente desnivelado, que se baseia em pedras de formato irregular, geralmente de calcário e por vezes pontiagudas, intervaladas com buracos de maior ou menor dimensão. Desnivelado porque na grande maioria dos casos nem se dão ao trabalho de nivelar o terreno e, com muitos buracos, porque também não se dão ao trabalho de os compactar devidamente. É, certamente, um piso excelente para algumas modalidades radicais mas, fica muito aquém de oferecer a segurança e o conforto necessários a quem se atreva a pisá-los sem usar equipamento adequado. As cadeiras de rodas só poderiam circular se os pneus fossem idênticos aos dos tractores uma vez que não existem, ou não conheço, outro tipo de equipamento que seja viável para o efeito. Mas, alguns, são bonitos. Formam padrões decorativos pelo contraste entre as pedras de distintas cores, normalmente, o branco, o preto, o marrom e o vermelho. Bonitos mas inúteis. Não sou nem tenho que ser contra este tipo de Decoração, apenas considero que devem coexistir alternativas ou então, fazê-lo apenas nas grandes praças e nunca nos passeios. Aí sim, podem fazer-se grandes ‘decorações’ para nos elevar o ego. Quem tem responsabilidades nesta área devia olhar para os outros países da Europa e perceber porque é que as pessoas usam, de facto, os passeios!? É fácil, até pela televisão se percebe que os passeios na maioria dos países da comunidade não são como ‘os nossos passeios’, são Passeios a sério. As pessoas usam-nos das mais variadas formas: caminhando, de bicicleta, de patins, etc e os que têm mobilidade reduzida não encontram obstáculos. Criamos tantas comissões neste país que, me atrevo a sugerir, que criem a Comissão de Análise para os Passeios do SecXXI. O trabalho a desenvolver é simples: basta viajar, olhar com atenção e tirar notas. Temos que repensar os Passeios para evitar os erros cometidos e que continuamos a cometer. Vila Nova de Gaia já o começou a fazer. Qualquer um pode deslocar-se pelo passeio marítimo sem qualquer tipo restrições. Na cidade, a maior parte dos passeios são acessíveis e a sensação é boa.
Não uso o ‘Nunca’ nem o ‘Para Sempre’ mas tenho quase a certeza que, tal como não consigo deslocar-me na minha cadeira de rodas em sítios como o Parque das Nações ou na nova Marina de Lagos, também já não será no meu tempo de vida que vou usar a maioria de ‘os nossos passeios’. Lamento e sinto falta. "

Fernando Mota Cardoso



Coisas Muito Boas da Vida: ter tido o privilégio de conhecer-te!


7 Comments:

Blogger pedro said...

Este comentário foi removido pelo autor.

2:08 da tarde  
Blogger Reflexo said...

Obrigada mais uma vez pelo teu post,que reflecte em muito as prioridades e os 'empecilhos',que não pretendemos lembrar que existem e que vivem em constantes dificuldades.
Lembrei-me de um livro que li há muito « O Ensaio sobre a cegueira», em que fecho os olhos e imagino como seria...o mesmo aconteceu com este texto...como seria e como me sentiria nesta sociedade cujo lema é desresponsabilização e desrespeito pelos outros.
Apenas passeios de outros...aqueles outros supostamente ditos normais!Cujo ditos normais também pouco se importam...
Boa semana

5:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É impressionante as coisas banais da vida de alguns que nos passam completamente ao lado :( É triste, mas a maioria de nós, seres humanos, é de facto muito egoista e muito pouco atento às perspectivas que não influenciam directamente o nosso quotidiano. Obrigada por me mostrares uma nova perspectiva, espero que influencies mais e mais pessoas até chegar ao ponto de mudar efectivamente os "Passeios de ninguém" e muitas outras coisas erradas deste nosso país.

Beijoca
(amiudadaportadolado - que não se está a conseguir registar :P)

8:08 da tarde  
Blogger Heidi said...

É bem verdade, esta calçada portuguesa, parece que não tem fim à vista. Mas fico contente, que hajam pessoas que partilham da mesma opinião que eu. Fica um chão completamente irregular, e sem cumprir a função que deveria. Não deveríamos nunca passar por este mundo, com uma atitude passiva, mas denunciar tudo o que nos prejudique pessoal e colectivamente.

11:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Há ainda a acrescentar que as esplanadas ocupam àreas não delimitadas. Alguns passeios da cidade do Porto nas zonas reabilitadas, mostram como a calçada portuguesa consegue ter apresentação e uma superfície lisa e livre de obstáculos: Foi empregado granito e a planificação do mobiliário urbano permite que se circule livremente. Os horríveis pilaretes para evitar que os carros subam os passeios foram substituidos na sua função por lancil alto e em esquina viva, o que faz os automobilistas pensarem duas vezes se querem ter uma jante estragada. O lancil é sempre em rampa suave nas passagens de peões. Há exemplos disto, que me lembre em frente à torre das Antas. O mau exemplo que me ocorre é a rua Gomes Pereira em Benfica, que merecia o estatuto de Caso de estudo, ou a Rua do Telhal.

10:42 da tarde  
Blogger Graza said...

Deeper. Segui o link vindo dos "Cidadãos por Lisboa", onde já tinha deixado também fotos sobre este tema e me preparava para abordar com um texto esta verdadeira bagunça que são os nossos passeios. Dou por mim a reparar nas reportagens da TV sobre outras cidades e a verificar as diferenças dos seus passeios. Não é uma tarefa fácil porque temos que acordar muita consciência que não se dá tão pouco conta disso.
Parabéns pela oportunidade do texto que aqui deixaste.

8:17 da tarde  
Blogger ASASparaViver said...

Olá,
cheguei a este comentário através do site «Cidadaõs por Lisboa». Li com atençao tudo o que disse e os retantes comentários.
Aceito os factos apresentados (eu própia fico aborrecida qdo ando de saltos altos e não consigo dar passada sem que o salto fique preso), no entanto, discordo da solução apresentada.
Eu adoro a calçada portuguesa. É impensável e completamente inestético, na minha opiniao, substitui-la por alcatão ou outra qq soluçao.
Para mim a solução seria manutençao dos próprios passeios. Tudo necessita d manutençao, os passeios não são excepção.

12:45 da tarde  

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